O João Neves entrou em campo com o Vizela com os seus olhos de luz. Não sabia que a situação da mãe piorara.


Reproduzimos com vénia o artigo do jornalista e escritor Luís Osório sobre a morte por cancro da mãe do jovem jogador do Benfica João Neves ocorrida poucas horas depois do jogo da Luz com o FC Vizela. Um jogo que jamais esquecerá.

 Sara, a mãe de João Neves


1. Se Deus existe, e eu acredito que sim, a Sara ainda será Sara até que os seus dois pequeninos precisem dela.

A Maria e o João certamente que não sabem o que pensar.

De repente, num repente, a mãe partiu numa viagem sem deixar um número de telefone, uma morada, nada. De um dia para o outro o mundo pareceu poder explodir, num dia a família celebrava um golo do João e a primeira chamada à seleção nacional e no outro chegava um diagnóstico de morte.


Foi há poucos meses, um cancro raro e tudo tão rápido.

A esperança de conseguir curar-se, um internamento por causa de uma febre, uma infeção generalizada, a operação urgente, a morte.


2. O João entrou em campo com o Vizela com os seus olhos de luz. O seu sorriso largo. A sua genialidade feliz.

Não sabia que a situação piorara.

Talvez soubesse que a mãe tinha febre, nada de especial.

O treinador tirou-o a meio da segunda parte. No banco do Benfica já havia quem soubesse. A trágica notícia foi-lhe dada no final, num balneário em que todos choraram abraçados numa roda.


3. Mas se Deus existe, e eu acredito que sim, a Sara anda por aqui.

Passou pela sua escola secundária em Tavira, esvaziou mentalmente o seu cacifo na sala de

professores de Educação Física, viu os seus alunos presentes e do passado, as brincadeiras no

recreio, os meninos a quererem saber mais do filho João, a perguntarem à professora se ele não podia visitá-los e jogar à bola.

Se E'le existe, Sara revisitou tantos momentos.

Dos alunos, da infância em Tavira quando as velhotas brincavam com o seu apelido, o apelido da sua mãe, Mártires não era apelido de gente, até parecia puxar o azar

Só que Sara não pensava em fatalismos, era positiva, os filhos herdaram o seu sorriso e os tais olhos iluminados

Casou apaixonada, manteve-se assim e teve de gerir a ausência do seu João. Era tão pequenino, mas tão talentoso a jogar futebol, o marido convenceu-a ao impensável, o miúdo não podia perder a oportunidade

Tinha 12 anos e um convite para sair de casa. E ele, ainda criança, passou a morar no Seixal

com outros miúdos com tantos sonhos quanto ele.

4.

Se Deus existe, e eu acredito que sim, Sara voltou aos dias em que punha Vic no peito do João

e da Maria, ao primeiro dia que os levou à escola, à noite em que o João se aninhou na sua

cama para Ihe perguntar se ela o deixava ir, se a mãe o deixasse ir ele prometia portar-se

sempre bem.


O que João não sabe é que ela chorou a noite toda.

Convulsivamente, como se as lágrimas nunca mais pudessem ser travadas.

As mesmas lágrimas que o João chora pela sua partida sem aviso. As mesmas que chora por cada memória, por cada abraço, por cada saudade, por cada telefonema antes de dormir - para onde poderá ligar agora quando o sono não chegar?

O que fará com o número de telefone dela, o número que diz "Mãe", o que fará amanhã e depois e depois, apaga o número, telefona como se fosse possível o milagre?

A Sara partiu jovem.

Tinha 50 anos.

O João e a Maria terão uma mãe jovem para sempre.

Uma mãe que os abraçará todos os dias mesmo que eles não o sintam, mesmo que apenas sintam uma pequena corrente de ar.

Eu acredito que sim.

IO

Acerca do autor 

Aos 49 anos, Luís Osório é hoje mais um escritor do que um jornalista. «Mãe, Promete-me que Lês» é o seu sétimo livro e sucede à «Queda de Um Homem», o primeiro romance. Foi director de jonais e de uma estação de rádio. É autor de programas de televisão e rádio, encenador, consutor empresarial e comentador político. Ganhou o Sete de Ouro, o Gazeta Revelação, o Prémio Inovação Manuel Pinto Azevedo. Foi nomeado três vezes para os Globos de Ouro pela autoria de Portugalmente e Zapping. Tem três filhos, todos rapazes.

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