JÁ O TEMPO SE HABITUA
A estar alerta não há luz
Que não resista à noite cega
Já a rosa perde o cheiro
E a cor vermelha cai a flor
Da laranjeira à cova incerta
ÀGUA mole àgua bendita
Fresca serra lava a língua
Lava a lama lava a guerra
Já o tempo se acostuma
À cova funda já tem cama
E sepultura toda a terra
Nem o voo do milhano
Ao vento leste nem a rota
Da gaivota ao vento norte
Nem toda a força do pano
Todo o ano quebra a proa
Do mais forte nem a morte
Já o mundo se não lembra
De cantigas tanta areia
Suja tanta erva daninha
A nenhuma porta aberta
Chega a lua cai a flor
Da laranjeira à cova incerta
Entre as vilas e as muralhas
Da moirama sobre a espiga
E sobre a palha que derrama
Sobre as ondas sobre a praia
Já o tempo perde a fala
E perde o riso perde o amor.
JOSÉ AFONSO