O crítico literário Manuel Alberto Valente rasga largo elogio na última revista do jornal Expresso à escritora vizelense Ana Bárbara Pedrosa após o lançamento do seu mais recente livro Amor Estragado que teve uma das apresentações na Casa da Cultura de Vizela.
Sob o título A BISNETA DE ÁLVARO DE CAMPOS (Álvaro Campos é um dos principais heterônimos do autor português Fernando Pessoa) o cronista escreveu o seguinte (que agradou muito à escritora)
"Em outubro de 1966, Eduardo Lourenço publicou na revista "O Tempo e o Modo" um ensaio intitulado "Uma literatura desenvolta ou os filhos de Álvaro de Campos". Referia-se a toda uma série de escritores que, nos anos 50 do século passado, superando as baias do neorrealismo, introduziam no romance português uma desenvoltura até aí reprimida pelas obediências políticas ou sociais (a título de exemplo, recordemos Agustina Bessa-Luís, Cardoso Pires, Almeida Faria ou Ruben A.).
Evidentemente que, com o correr dos anos, Álvaro de Campos teve netos; e talvez tenha chegado a hora de os bisnetos levantarem a voz. No caso, uma bisneta, Ana Bárbara Pedrosa. Depois de "Lisboa, Chão Sagrado" e "Palavra do Senhor", publicados respetivamente em 2019 e 2021, "Amor Estragado", recentemente vindo a público, consagra-a como uma das vozes mais desenvoltas da novíssima literatura portuguesa.
"Amor Estragado" tem duas vozes narrativas: a de Manel e a de Zé, dois irmãos, sendo que o primeiro (sabe-se logo, é a primeira frase do livro) matou a mulher. Alternando ao longo do livro, as duas vozes recompõem diante do leitor a realidade de uma família pobre/remediada da província, com os seus dramas, os seus podres escondidos, as suas contradições. Manel, o que matou a mulher, é um alcoólico profundo, e Zé o cidadão honesto e bem-comportado que tenta equilibrar os laços de família. Poucas vezes, na nossa literatura, foram criadas tão poderosas figuras masculinas; o que significa que Ana Bárbara Pedrosa, mulher, foi capaz de retratar o mundo masculino e, dificuldade maior, entrar no cérebro de um homem alcoólico.
Se sublinho este aspeto é apenas para mostrar o ridículo daqueles teorizam sobre o lugar da fala, que decretando que um branco não pode escrever sobre um negro, uma mulher sobre um homem, um heterossexual sobre um gay, e muitas outras patetices semelhantes. Stendhal afirmou, em pleno século XIX, "Madame Bovary sou eu". Um século depois, a cultura woke, na sua ânsia de destruir os fundamentos da cultura ocidental, proclama a existência de mundos fechados e intransponíveis, onde só os seus membros podem viver. Ou seja, tenta destruir "a louca da casa", a imaginação, que permite a qualquer mulher ou qualquer homem, independente da sua cor, da sua religião ou da sua orientação sexual, reinventar a totalidade do mundo e mergulhar sem limites no âmago do pensamento humano. "Amor Estragado" é um grande livro. Maior ainda por a bisneta de Álvaro de Campos nos atirar à cara a grandeza sem limites da literatura."