“--Era um domingo calmoso de agosto. Todos os hospedes do Hotel do Padre, nas Caldas de Vizella, estavam sentados á sombra do parque do hotel, conversando, lendo, jogando, flirtando.
Nenhum d'elles ousára ir á estação esperar o comboio. Os passarinhos, se não pudessem encontrar um doce refugio nas arvores marginaes do rio Vizella, cairiam do ceu assados e depennados. Com uma soalheira d'aquellas, não havia nada que apetecesse tanto como o descanso e a sombra. De repente ouviu-se o silvo da locomotiva…”
Foi isto escrito em 1892 em Noites de Cintra de Alberto Pimentel, mas deixemos isso para saber da história.
Foram dez os amigos que se fizeram a Sintra na primavera para ouvir os rouxinóis. Todos da província, mas a fazer vida em Lisboa, o mais velho com 37 anos. Como em todos os projetos de homens, marca-se, mas custa a acontecer. A viagem que era para abril, acabou por se concretizar apenas em finais de maio e claro que os rouxinóis eram um pretexto para as queijadas da Sapa e laranjas do visconde de Arriaga.
“--Em Cintra, alvitrou o Vasconcellos, sempre o mais auctoritario de todos, cada um de nós ha de contar á noite uma historia. Vá feito?”
Athayde era empregado da Junta de Crédito Publico e no seguimento do desafio: “--Menos eu…
Eu só estou habituado a contar... contos de réis.”
“--Has de contar, intimou o Leotte, aquelle caso do principe das Caldas de Vizella, que uma noite te ouvi no Gremio.”
“--Não é um conto... de réis; mas é um conto de principe”
Uns vinte minutos depois do silvo da locomotiva pararam à porta do hotel duas americanas escanceladas. Da primeira saiu um sujeito de fato e chapéu branco, acompanhado de uma senhora. Teriam vinte e quatro ou vinte e cinco anos. Da segunda carruagem saíram duas criadas e dois criados com malas de mão.
A chegada destas personagens causou sensação entre os hóspedes do Hotel do Padre, os quais se interrogavam sobre quem seriam.
“--É um principe! dizia ironicamente um janota de Guimarães.”
Já durante o jantar os hóspedes trocavam sorrisos entre si quando o príncipe e a princesa sentados à cabeceira da mesma, silenciosos e imóveis como estátuas e atrás de cada um, os seus dois criados de casaca.
Um dos hóspedes mais estimados era o padre José Maria, que perante a cena arregalou os olhos, franziu o beiço e sentou-se. As senhoras segredavam entre si e os homens de quando em vez arriscavam em voz alta uma alusão.
Já no final do jantar, o príncipe e a princesa levantaram-se e os seus criados arrastaram-lhes as cadeiras, saíram para o quarto e não cumprimentaram ninguém.
A galhofa explodiu: “Padre José Maria teve pilhas de graça. Um hospede aventou a idéa de que se pedisse o registo do hotel para saber-se o nome do recem-chegado. Veio o registo. Dizia simplesmente isto: Commendador Piratinino e sua esposa”
“--Pois, srs., observou padre José Maria, é mais a salsa que o peixe!”
O janota de Guimarães foi quem teve a ideia de confidenciar aos empregados do hotel de que o
comendador Piratinino era um príncipe disfarçado. “um bello nome para principe! observou uma senhora.”
“--Mas se nos perguntarem d'onde o homem é principe, que responderemos?”
“--Que é principe da Ribária.”
“--E onde ficará geographicamente a Ribária?”
“--Sim... isso...”
“--A Ribária ficará na peninsula dos Balkans, entre a Rumélia e a Bulgária, se quizerem. Nas Caldas de Vizella pode haver tudo, menos um mappa da Europa. Ninguem irá verificar; soceguem.”
Assim ficou decidido pelos hóspedes do Hotel do Padre que o comendador Piratinino e sua esposa seriam os príncipes da Ribária. A mensagem foi passada aos empregados do hotel a quem pediram a máxima reserva. Uns quatro minutos depois os criados revelaram às criadas e uma hora depois já constava em toda a Vizela que os príncipes da Ribária estavam hospedados no
Hotel do Padre. Suspeitava-se que as malas que tinham chegado nas carruagens estavam carregadas de joias da princesa. Dizia-se que na Ribária havia muitas minas de metais preciosos e lá jamais houvera deficit.
Numa das manhãs, o príncipe e a princesa saíram para tomar banho na lameira e o povo pode vê-los. Os pobres seguiram-nos e o príncipe Piratinino pediu a um dos empregados que distribuísse esmolas. Foram para cima de dezoito vinténs em cobre e terá sido por um tris que não houve vivas aos príncipes. Foi tão convincente que até os hóspedes que inventaram a história se haviam convencido que Piratinino era mesmo um príncipe, mas ainda assim foi necessário inventar que na Ribária a realeza só podia cumprimentar os fidalgos. Isto porque o povo de Vizela tinha visto uma vez o rei D. Luís em Guimarães a cumprimentar toda a gente e já começavam a estranhar.
A história contou-se e já vinham pobres de Guimarães, Negrelos e de Santo Tirso. Foi mesmo necessário proibir-lhes a entrada no parque do Hotel do Padre, mas eles ainda assim penduravam-se nas árvores só para ver sua alteza da Ribária.
Um certo dia, um dos criados pediu informações sobre a navegabilidade do rio Vizela e claro, aquele a quem a pergunta foi feita rapidamente espalhou que sua alteza ia para o rio. O Padre José Maria que não perdia oportunidade: “--Para o Rio... de Janeiro, talvez. O principe sente-se arruinado pela mendicidade das Caldas de Vizella e seus arredores. Vai talvez restaurar a fortuna.”
O criado explicou logo que não; “Que o principe tinha dinheiro como milho.”
Um dos criados do príncipe chamou um homem para ir ao hotel buscar uma mala grande e dirigiu-se para a margem do rio. Pouco depois chegou o príncipe Piratinino, todo de branco, já lhe chamavam o príncipe branco.
“Deu-se rebate no hotel, e todos os hospedes, repartidos em diversos grupos, se encaminharam para as margens do Vizella, seguindo uns pela Lameira, outros pelo Mourisco.”
O príncipe estava mesmo no meio do rio a pescar à linha num barco de lona. O criado ficou na margem, mas isso o povo não estranhou porque já sabia da etiqueta da Ribária e que era muito rigorosa.
“Toda a população de Vizella, a fluctuante e a permanente, pôde saciar seus olhos curiosos na
contemplação d'esse quadro inteiramente novo ali: um principe estrangeiro pescando á linha dentro de um barco de lona. Só os hospedes do Hotel do Padre se riam, porque os do Cruzeiro do Sul, que não estavam na confidencia, e os bons populares ingenuos tomavam o caso muito a serio, e contemplavam encantados o principe branco pescando.”
Bom o resto… o barco começou a rodopiar, o barco voltou-se e sua alteza caiu ao rio. Levantou-se uma grande gritaria, só os hóspedes do Hotel do Padre se riam. Ainda houve um rapazito que se atirou ao rio para salvar sua alteza, cheirava-lhe a gorjeta e nadava como um desesperado.
“Foi-lhe facil trazer para terra o principe, e o barco. Mas o principe, que estava de fato branco, precisava mudar de toilette. A decencia reclamava-o. E enquanto o criado corria ao hotel, a pedir outro fato para sua alteza, o desgraçado principe da Ribária, mettido dentro da mala, só com a cabeça de fóra, evitando olhar para qualquer parte, esperava humilhado...”
E aqui finda esta história da vida airosa de Vizela em finais do século XIX e cujas histórias serviam para animar as noites galhofeiras de Sintra.
Alberto Pimentel, nasceu em Cedofeita em 14 de Abril de 1849 e foi um dos mais férteis escritores da segunda metade do século XIX. Notabilizou-se em muitas áreas como o romance, poesia, biografia, peças de teatro, obras políticas e tradições populares.
Alberto Pimentel foi amigo chegado de Camilo Castelo Branco, mas é um autor caído em esquecimento.
Nas suas obras, Pimentel tenta ser fiel aos costumes, tradições, datas, figuras e acontecimentos marcantes da história portuguesa. A este autor deve-se em 1902 uma monografia de Santo Tirso, Santo Thyrso de Riba D´Áve.
O melhor casamento é outra obra de Alberto Pimental, publicada em 1912 e que conta a história de Juca Tagilde, um excêntrico a fazer vida em Lisboa, frequentador do São Carlos, e que se orgulhava no seu nome por aludir às suas origens.
TEXTO-PESQUISA DE JORGE MIRANDA