Quando há 10 anos iniciei os apontamentos sobre as fábricas de papel do rio Vizela, escrevi que não
esperava trazer à luz do dia novos dados, mas apenas tratar a informação dispersa, organizando o
pensamento e com isso, talvez criar a possibilidade de novas linhas de investigação. Como em qualquer
dissertação que siga os preceitos científicos, a busca do desconhecido traz respostas, trazendo, contudo,
mais dúvidas e mais perguntas.
Concentremo-nos na fábrica de Francisco Joaquim Moreira de Sá, que é a que nos traz de volta à “máquina
de escrever” para responder à pergunta essencial sobre a localização concreta da Fábrica Real de Papel e
Tinturaria de Sá.
Ainda antes de avançar no tema, é justo dizer que nesta fase da empreitada já não vou só e que a ela se
juntou o amigo António Cunha, de quem já os leitores conhecem o seu afinco e incansável busca de fontes
que se relacionem com a história e cultura vizelense. É por isso um consórcio de investigação, a dois, mas
que muito gostaríamos de ver alargado.
Sobre a fábrica de papel de Francisco Joaquim Moreira de Sá, encontram-se múltiplas publicações que
referem ter sido estabelecida na margem esquerda do rio Vizela na Quinta da Cascalheira. Também é
escrito noutras que a dita fábrica foi destruída até aos alicerces pelo exército napoleónico, não restando
dela qualquer vestígio. Seguimos, pelos escritos de José Joaquim da Silva Pereira Caldas, no n.º 182 do
Jornal A Opinião publicado em 1901 e que denomina esta fábrica, como Fábrica da Cascalheira e que dela
apenas restam diminutas ruínas nos seus saudosos tempos juvenis.
O professor Pereira Caldas nasceu em 1818 e por isso podemos entender que ao referir-se aos saudosos
tempos de juventude seria isso até cerca de 1840, presumimos. Trata-se de um testemunho incontornável, de alguém que escreve, não do que leu ou ouviu, mas daquilo que viu. Já sabíamos do interesse deste ilustre vizelense pela fábrica de papel, pois foi ele quem primeiramente percebeu, que
para além da ruína da fábrica, o tempo e o vandalismo tomaria as ruínas das ruínas e que perante a
insensibilidade de as preservar, escreveu a Vindicação da Prioridade do Fabrico de Papel com Pasta de
Madeira em 1867, para que a memória perdurasse. Com isto temos que a fábrica se situava na
Cascalheira, sendo, contudo, insuficiente pois dentro do que é a extensão da quinta da Cascalheira, temos ainda de admitir que pudesse ser mais extensa do que aquilo que é hoje. Dado relevante é de que Francisco Joaquim Moreira de Sá era proprietário de toda a frente de rio, desde pelo menos a ribeira de
Sá até ao Mourisco, pois em 2 de Outubro de 1800 acorda em escritura a venda de um prazo do casal do
Mourisco (De acordo com o n-1145 Fls 62 do tabelião Nicolau Pereira). Pensamos também ser correto
admitir que esta larga frente de rio seria sua propriedade, e que se ligaria ao solar da quinta de Sá. Disso temos indícios, pois sabemos pelo Notícias de Guimarães, n. 1348 de 1957, que a essa data, a Quinta da
Cascalheira era propriedade do Coronel Mário Cardoso o qual foi presidente da Sociedade Martins Sarmento. Soubemos ainda pelo Eng. Adelino Campante, estudioso destas matérias, que também a contígua quinta de Rielho que encosta ao solar de Sá, seria sua pertença, pois ficou para uma das filhas.
O mapa da província de Entre Douro e Minho de 1795 de Custódio José Gomes de Villas Boas, assinala
uma fábrica de papel entre a ribeira de Sá e Porto Cavaleiro, na margem esquerda do rio Vizela. Facto
curioso neste mapa é de que, na margem direita regista um braço de rio ou canal, que nasce bem antes da ribeira de Sá e junta-se de novo ao rio Vizela mais ou menos de frente com o local marcado para a fábrica de papel. Outro mapa, este da província do Minho em 1832, volta a assinalar a fábrica de papel no mesmo local e novamente o tal braço de rio ou canal.
Em 1986, são publicadas as atas do I Encontro Nacional sobre Património Industrial, pela Coimbra Editora.
Nesta publicação está incluso o estudo de António P. M. de Sousa e Manuel Ferreira Rodrigues, A Fábrica
Real de Papel de Vizela. Já nos seus anexos surge uma fotogravura de um arco de pedra sobre um pequeno
canal e, na legenda, é referido tratar-se de arcaria e restos da fábrica de papel de madeira de Vizela, e acrescenta tratar-se de uma gravura do Diário de Notícias de 30-03-1929. Procuramos o original do Diário de Notícias, mas sem sucesso. De resto, a cópia desta publicação que nos foi feita chegar pelo amável e saudoso Rui Moreira de Sá Guerra, mostra-se de grande importância, pois conforme a sua bibliografia integrou documentação do Arquivo da Casa de Sá com entrevistas à Sr.ª D. Maria dos Milagres Moreira de Sá e Melo de Magalhães Cardoso e à Sr.ª Dr.ª de Fátima Sá e Melo, e ainda foi possível aceder aos arquivos da Junta do Comércio, nomeadamente ao processo de Franc. J. Moreira de Sá, 1792 a 1809.
Voltando aos restos de arcaria, lembramos que Rui Moreira de Sá e Guerra já em A Prioridade do Fabrico
de Papel com Pasta de Madeira na Quinta de Sá, fazia referência a todo um conjunto de escrituras de
venda que antecederam a construção da fábrica e onde já era referido que seriam construídos pontilhões
para atravessar o canal, a pé e de carro. Também é dito que seria edificado um arco sobre o rio que seria
servidão particular para acesso a limpeza do canal e para guiar águas e que este arco teria um portal na
margem esquerda.
Socorremo-nos ainda do cruzamento de mais três documentos. Primeiro; um postal das Oficinas do
Comércio do Porto com foto de data desconhecida, onde é possível ver, no local em que será hoje o Bar
do Rio, um amontoado de pedras e que já outros estudiosos da História de Vizela o referiram como restos
da fábrica de papel, nomeadamente Júlio César Ferreira. Mas foi António Cunha com quem partilho este
consórcio, que ao ampliar a foto percebeu com o possível rigor alguns novos elementos; desde logo no
local onde será o atual parque infantil da cascalheira, sobressai o que parece ser um arco sobre um canal
que segue em direção à ponte da Cascalheira. Outro pormenor é que imediatamente a montante da ponte
e praticamente sob esta, parece existir um açude, mas não é certo pois pode ser simplesmente vegetação
e a sombra provocar a ilusão de que no leito existe uma queda de água. Segundo documento; uma planta
de 1867 elaborada pelo Engenheiro Bartholomeu Aquiles Déjant em 1867 e que no lugar da Cascalheira,
desenha com proeminência três ilhotas, duas no que parece ser o leito do rio e outra à direita das primeiras
e que parece estar entre o leito e um canal saliente em forma de alsa. Neste mapa estão ainda assinaladas
duas construções marcadas como moinhos da cascalheira e que “unem” as duas primeiras ilhas. Terceiro;
uma gravura de 1886 de João de Almeida e publicada em Minho Pitoresco, na qual se vêm os edifícios dos moinhos da Cascalheira e um açude junto aos mesmos. A gravura tem o observador na margem direita,
não dá para perceber se estão nas referidas ilhas, mas dá para ver que existe água a circular pela esquerda.
Vamos juntar ainda outro elemento. É conhecida a existência de restos de um açude imediatamente a
montante da curva de rio, na Cascalheira (chamemos 1º açude para facilitar). Esta levada ficou a
descoberto quando recentemente a comporta do parque foi aberta para desassoreamento e construção
dos muros de suporte da margem esquerda. Coincidentemente o momento ficou registado nas imagens de satélite do Google Earth. Da configuração destas ruínas sobressai a sua posição em cunha que em vez de encaminhar as águas para os moinhos, encaminha para a margem direita, ou seja, passando entre a
terceira ilhota e a margem direita no que será o canal em forma de alsa. Não conhecendo nós qualquer infraestrutura na margem direita que necessite de ser abastecida com água, esta configuração apenas
faria sentido se ao açude a que fazemos referência, fosse complementado por outro no final do canal (chamemos 2º açude). Ou seja, onde hoje está a ponte da Cascalheira, este segundo açude encaminharia
as águas para a margem esquerda.
Neste ponto parece validar a tese da existência de uma levada sob a ponte da cascalheira e visível no postal das Oficinas do Comércio do Porto.
Admitindo esta tese, entendemos que efetivamente, o canal da direita e que hoje limita as margens do rio, seria criado artificialmente para levar a água do primeiro para o segundo açude e alcançar este em posição longitudinal, maximizando assim a velocidade da água e fazendo-a sair do leito pela margem esquerda. Ainda junto ao primeiro açude, na margem esquerda, nasceria um outro canal que seria atravessado pelo arco de pedra atrás documentado e muito provavelmente de alguma forma serviria também os moinhos. Daí seguia até ao segundo açude, cujas águas se juntariam. O canal, presumimos,
prolongar-se-ia para jusante indo abastecer o edifício principal da fábrica que assim se deveria situar na
margem esquerda em local oposto ao campo de mini-golfe ou chalé do parque. As águas do canal
deveriam voltar ao leito do rio, imediatamente a seguir ou juntando-se às águas de Porto Cavaleiro e daí
para o rio. Desde a primeira entrada do canal, até cair novamente no rio, estimamos uma diferença de
cotas de aproximadamente 3m.
Esta tese, que se nos apresentou robusta, tornou-se frágil quando nestas andanças encontramos um
testemunho fotográfico datado de 1881 e que será da autoria de J. Bastos ou eventualmente alguma
confusão de nome com Francisco Bastos Júnior. Nesta foto que apresenta uma grande qualidade,
aparecem dois edifícios à esquerda, sem dúvida os moinhos da Cascalheira. São dois os edifícios, vê-se o
que parece ser a levada que desloca a água para a margem direita. Sob esta levada, em pé, uma figura
humana, parece um pescador e, por trás deste um grande penedo com uma abertura central. Este penedo
parece indiscutivelmente o da base da atual ponte da Cascalheira na margem direita. A ponte parece não
existir, nem tão pouco o caminho da Cascalheira na margem direita. Não se percebe na foto qualquer
açude junto a este penedo e assim se se fragiliza a tese anterior.
Admitamos outra tese; a de que ignoramos o porquê da configuração do 1º açude, ou então a possibilidade adiantada por António Cunha de que pudesse ser para desviar detritos para a margem direita e aqui obriga-nos a antes de avançar, aludir á toponímia de cascalheira e que o professor Pereira Caldas nos seus escritos adiantou tratar-se de um local de acumulação de aluvião muito procurado para a construção. A isto não será alheio a formação de ilhotas. Voltando, ao raciocínio, a montante da curva e moinhos da Cascalheira, nasce na margem esquerda um canal, que é visível no postal acima referido e sob o qual se vê o que parece ser uma pequena ponte, a qual pensamos corresponder à fotogravura do
Diário de Notícias. Este canal que se consegue ver até alcançar o ponto onde hoje está o apoio esquerdo
da ponte da Cascalheira, deveria prolongar-se pela margem esquerda, colocando de qualquer modo o
edifício principal da fábrica no mesmo local da tese anterior.
Nas consultas que fazemos, há quem acredite que a fábrica nunca chegou a ser construída e por isso é em
vão a sua procura. Não cremos nessa hipótese, porque em documento datado de Fevereiro de 1843, um
inventário de bens da Casa de Sá, identifica a grande casa da fábrica de papel na herdade da Quinta da
Cascalheira, assim como as casas dos caseiros da mesma quinta. Também nas atas do I Encontro Nacional
sobre Património Industrial no artigo A Fábrica Real de Papel de Vizela, é feita referência a um documento
do arquivo do M.O.P. e datado de 1809, posterior ao embarque de Moreira de Sá para o Brasil, dando
conta de que a fábrica ainda laborava, mas com muitos obstáculos.
Pensamos que tal crença possa estar relacionada com outro facto, o de que terá estado projetado desde
o início um canal pela margem direita do rio e que deveria nascer abaixo da quinta de Lagoas servindo
para abastecer a fábrica de papel e, esse sim, nunca construído.
Voltemos a factos, em 1809 de acordo com documento do M.O.P já mencionado, é dito que a fabrica
laborava com grandes dificuldades técnicas, as quais se relacionavam com dificuldades de abastecimento
de água. É dito nesse documento que a levada inicialmente construída, dada a sua baixa altura, não
proporcionava às águas a força suficiente para mover as rodas. Era, pois, necessário extrair a água de um
ponto superior, mas isso causaria prejuízos a terceiros. Tudo indica que Moreira de Sá tinha previsto esta
dificuldade desde sempre, aliás, a isso também não será alheio o facto de ter havido no início do projeto
dificuldades em estabelecer a localização da fábrica, pois, António P. M. de Sousa e Manuel Ferreira
Rodrigues explicam que inicialmente a fábrica esteve prevista para o lugar do Montado da Bousse Vedra,
junto à fonte das Caldas, em terras suas. mas essa intenção sofreu oposição da fábrica de Alvares Ribeiro.
Esteve depois projetada para o lugar de Vandinhão, mas seria muito próximo da de um tal de António
Martins. Foi só após estas dificuldades que ficou decidido edificar a fábrica na Quinta da Cascalheira, em
terrenos da sua propriedade.
Mas como dizíamos, o abastecimento de água terá sido previsto desde o início, pois ainda antes do virar
do século, em 1798, Moreira de Sá estabelece a venda de propriedades para financiar o empreendimento
e nessas escrituras fica dito que os proprietários da Quinta de Lagoas serão indemnizados pelos prejuízos
nos moinhos, resultantes do levantamento do rio para a construção do canal divisório das águas. Para
essa indeminização previa 350 mil reis. Foi ainda dito que esse canal teria 12 palmos de largura, ou seja,
o equivalente a 2 metros e 60. Ora este canal, segundo as nossas estimativas deveria ter entre 900 e 1200
metros e, de alguma forma, previa como atravessar as águas para a margem esquerda.
Para sustentar a intenção de construir um tão arrojado canal, temos que juntar outro facto. Francisco
Joaquim Moreira de Sá, escreve, em 1806, uma carta a António de Araújo de Azevedo, sobre o seu projeto
industrial para uma fábrica de fiação e tecelagem de linho, algodão e lã previsto para a Quinta da Prova
em Arcos de Valdevez. Nessa carta percebe-se que é Moreira de Sá quem está a dirigir para o futuro Conde
da Barca, todos os assuntos relacionados com a construção do edifício e dos canais. Esta fábrica iria ter já uma máquina de vapor e o canal de águas teria uma extensão superior a 4 kms, captando água pela
margem direita do rio Vez e atravessando para a margem esquerda a cerca de 3.500 m da captação, e daí
orientado para a quinta da Prova, nas margens do rio Lima. Moreira de Sá e Araújo de Azevedo haviam ainda acordado que além de construírem o canal, deveriam deixar o rio Vez navegável entre os Arcos de
Valdevez e a sua foz e daí o rio Lima até Viana, adaptando um projeto já anterior e a que estavam determinados a dar corpo, com o fim de dinamizar as trocas comerciais. A inspiração deste arrojado projeto estaria certamente nas viagens de Araújo de Azevedo a Haia. Nesta carta Francisco Moreira de Sá
informa que a Câmara da Barca também está interessada na navegabilidade e que estaria disposta a pagar por isso. Também informa sobre uma possível sociedade com Clamouse que foi dono da primeira fiação
têxtil no norte de Portugal e que foi cônsul francês no Porto.
Esta carta de 1806, contemporânea à fábrica da Cascalheira, é uma evidência de que Francisco Joaquim
Moreira de Sá era homem que liderava projetos ainda bem maiores que aquele que estava projetado para
a sua fábrica de papel. Não é por isso é um absurdo admitir que o canal estaria projetado desde Lagoas até à Cascalheira e que atravessaria o rio. Talvez por este projeto ter dado entrada na administração da época, os mapas de 1795 e de 1832, acima mencionados, apresentam já nesta zona um canal na margem
direita do rio.
Voltando à fábrica da Cascalheira, e à escritura da sociedade em 1804. Aí é dito que a casa da fábrica teria
300 palmos de comprido e 82 palmos de largura. Isso seria 66 metros de comprimento por 18 de largura,
diríamos que seria ligeiramente maior que o parque de estacionamento em frente ao atual bar do Rio.
Ainda neste documento é mencionado um edifício para laboratório e sobre esse acreditamos que não
tenha sido construído de raiz, mas antes que poderá ter sido adaptado um moinho para esse fim. Aliás
esse conceito terá Francisco Joaquim Moreira de Sá repetido no Brasil, quando em 1813 escreve uma
carta a dizer que tinha intenções de montar uma fábrica em ponto pequeno.
Estas achegas à localização da fábrica de papel, tentam estabelecer com a exatidão possível a sua
localização e as condições em que seria feito o abastecimento de água. São, pois uma tese, não são
certezas. São uma montagem arqueológica de frágeis cacos, ou antes documentos, que quando
costurados permitem criar o cenário que há pouco mais de 220 anos encontraríamos na margem do rio
Vizela.
Finalmente, aproveitamos para expressar o agradecimento a um conjunto de pessoas com quem falamos sobre o tema da Fábrica de Papel da Cascalheira e que connosco fizeram questão de contribuir:
começamos por mencionar a amabilidade do saudoso Rui Moreira de Sá Guerra; Cândida Batista, diretora
da Biblioteca Pereira Caldas da Escola Sá de Miranda; Adelino Campante, investigador da história de
Vizela; Júlio César Ferreira, também investigador da história de Vizela; Paróquia de Santo António do rio
Abaixo no Brasil; Creuza, entusiasta de história de Santo António do rio Abaixo no Brasil; e ainda, David
Bento de Santa Eulália e gestor da página de Facebook Vila de Santa Eulália.
Texto de Jorge Miranda
Pesquisa de António Cunha e Jorge Miranda
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