Tiago Campante publica sobre Arqueologia Galática na conceituada revista National Geographic

Arqueologia Galáctica é o artigo publicado numa das reviostas mais fmnaosas do mundo pelo vizelense Tiago Campante, Marie Curie Fellow no Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço e Professor Auxiliar Convidado na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto com blogue científico.


 Arqueologia Galáctica
A fim de revelarem os infindáveis segredos da nossa galáxia, a Via Láctea, os astrónomos não hesitam em vestir a roupa de arqueólogos. Arqueólogos Galácticos, pois claro.
segunda-feira, 8 de junho de 2020

Por Tiago Campante

“A Via Láctea nada mais é do que uma massa inumerável de estrelas dispostas em aglomerados.” Desta forma descreveu Galileu Galilei na sua obra seminal, Sidereus Nuncius (em português O Mensageiro das Estrelas, 1610), o que via através da ocular do seu telescópio. Revolucionárias para a época, estas observações deixaram um legado que reverberou através dos séculos. Mas o que sabemos verdadeiramente acerca da Via Láctea ou, simplesmente, a Galáxia?

Tal como as demais galáxias, este enorme conjunto de estrelas, gás e poeiras a que chamamos Via Láctea é hoje diferente do que foi num passado longínquo. Desvendar esse passado e o modo como a Via Láctea evoluiu até ao que nos é dado a observar presentemente continua a ser um dos grandes desafios da astronomia moderna. Se quisermos melhor compreender o passado da Via Láctea, torna-se imperativo medir com precisão as propriedades dos seus blocos constituintes, ou seja, das estrelas que a compõem, e em particular, conhecer as suas idades. Como em qualquer sítio arqueológico, aqui começa o intrincado trabalho da Arqueologia Galáctica.


Via Láctea, o nosso quintal cósmico
A Via Láctea tem uma massa equivalente a 1 bilião de sóis. Apenas uma fracção desta massa corresponde, no entanto, à matéria comum, isto é, a matéria que constitui as estrelas, gás e poeiras, e também os planetas e o nosso corpo. A esta matéria chamamos bariónica, do nome barião dado a partículas como o protão e o neutrão, constituintes dos átomos. A outra fracção, significativamente maior, corresponde à designada matéria escura, de natureza desconhecida, mas cuja existência os astrónomos podem inferir a partir da atracção gravitacional que ela exerce sobre a matéria bariónica.

Apesar do aspecto de esteira leitosa com que a Via Láctea se nos apresenta, sem uma estrutura evidente, se a pudéssemos ver de fora, iríamos reparar que a matéria bariónica não se distribui ao acaso. Com efeito, a sua distribuição define as três principais estruturas morfológicas da Galáxia, que designamos por disco, halo e bojo.

O disco é uma estrutura plana em rotação onde estão situados os berçários estelares. As estrelas jovens formam um distinto padrão espiralado com braços em forma de S e que fazem da Via Láctea uma típica galáxia espiral. Com um diâmetro de 150 000 anos-luz, o disco contém aproximadamente 80% de toda a matéria bariónica da Via Láctea.

O Sistema Solar pertence ao disco, situando-se a 28 000 anos-luz do centro Galáctico, no braço de Orionte. As estrelas do disco têm uma abundância de elementos químicos mais pesados ​do ​que o hélio (a que em astronomia chamamos metalicidade) de pelo menos um décimo do valor que encontramos no Sol, e tal como este, as suas idades não ultrapassam os 10 mil milhões de anos (a idade do Universo está estimada em 13,8 mil milhões de anos).

Por sua vez, o halo é uma estrutura esférica que se estende por um raio igual ou superior ao do disco. O halo é composto principalmente por estrelas velhas, com idades superiores a 10 mil milhões de anos, e com metalicidades inferiores a um décimo do valor solar, o que significa que são pobres em metais (nós, os astrónomos, chamamos metais a todos os elementos químicos mais pesados do que o hélio). A densidade de estrelas no halo é em geral muito baixa. Observam-se, no entanto, numerosos aglomerados com elevadas concentrações de estrelas, chamados enxames globulares. Nestes enxames podem encontrar-se várias estrelas num cubo de espaço com um ano-luz de aresta (como referência, a estrela mais próxima do Sol está a quatro anos-luz).

Por último, o bojo é também uma estrutura esférica, mas distribuída por um raio de 10 000 anos-luz em torno do centro Galáctico. A densidade estelar do bojo é semelhante à dos enxames globulares encontrados no halo, e tal como as estrelas do halo, as estrelas do bojo são velhas, com idades superiores a 10 mil milhões de anos. Contudo, a sua metalicidade média é aproximadamente a do Sol.

Arqueologia... Galáctica!
Com a descrição anterior quis fornecer um instantâneo do estado actual da Galáxia. Porém, ele nada nos diz sobre o seu passado. Teorias relativas à formação da Via Láctea abundam, não obstante. As que reúnem maior aceitação vão desde cenários simples, como o colapso monolítico de gás, a cenários tão complexos quanto a fusão de galáxias primitivas no âmbito da teoria cosmológica do Big Bang.

Como vimos, a Via Láctea apresenta diferentes estruturas (disco, halo e bojo), cada uma albergando uma população estelar característica, o que faz da Galáxia um quebra-cabeças complexo. Estas populações estelares têm propriedades químicas e cinemáticas (ou dinâmicas) distintas entre si que revelam épocas únicas de formação e os diferentes processos que moldaram a sua evolução. O objectivo da Arqueologia Galáctica é o de reconstituir esta história evolutiva a partir do estudo da composição química e da dinâmica de grupo actual das estrelas que compõem cada uma destas populações.

Como em qualquer empreendimento arqueológico, a capacidade de estabelecer a cronologia de eventos passados é de suma importância para a Arqueologia Galáctica. Com efeito, a possibilidade de medir com rigor as idades das estrelas aporta uma nova dimensão a estes estudos das populações estelares. O mapa crono-quimio-cinemático daí resultante pode então ser usado para dissecar a Via Láctea nas suas principais estruturas e, assim, isolar os vários processos responsáveis pela sua formação e evolução.

A Arqueologia Galáctica é uma área em franco crescimento. Tal deve-se em grande parte aos dados cinemáticos e astrométricos (ou das posições das estrelas) de grande qualidade que têm sido disponibilizados pelo satélite Gaia da Agência Espacial Europeia (ESA), lançado em 2013. Estes dados são complementados por levantamentos espectroscópicos de larga escala conduzidos a partir de instrumentos no solo (p. ex., APOGEE, RAVE, Gaia-ESO, LAMOST e GALAH), e que revelam a composição química das estrelas através da decomposição espectral da luz que delas nos chega.

Nesta investigação da história da Galáxia, há uma classe de estrelas particularmente útil, as estrelas gigantes vermelhas, que eu e os meus colegas utilizamos como eficientes sondas ou faróis Galácticos. As gigantes vermelhas são estrelas evoluídas, que esgotaram o hidrogénio nos seus núcleos no processo de produção de hélio e energia. Podemos pensar nelas como sóis envelhecidos.

Extremamente luminosas e ubíquas, as gigantes vermelhas são observáveis ​​a grandes distâncias, permitindo sondar um volume substancial da Galáxia. No entanto, os métodos tradicionais de datação destas estrelas, baseados na sua astrometria e espectroscopia, atingem uma precisão manifestamente insuficiente (geralmente acima dos 50%, ou seja, a incerteza na medição é pelo menos metade do valor medido).


Cronometrando a vida das estrelas
Que caminho alternativo podemos então seguir? As gigantes vermelhas exibem variações periódicas do seu brilho, excitadas por correntes de convecção de material quente sob a sua superfície, o mesmo tipo de correntes que observamos na água em ebulição numa panela. Tais variações do brilho são a manifestação de oscilações internas, em certa medida semelhantes às ondas sísmicas na Terra, e o estudo destas oscilações recebe a exótica designação de asterossismologia.

Ora, estas oscilações estão presentes ao longo de todo o raio de uma estrela, e com o seu auxílio conseguimos sondar a estrutura interna das gigantes vermelhas. A análise destas oscilações, por comparação com os mais recentes modelos teóricos, com os quais os astrónomos procuram explicar os processos físicos no interior das estrelas, permite assim inferir as idades das gigantes vermelhas com elevada precisão, que pode atingir os 10%. Portanto, com clara vantagem em relação aos métodos tradicionais.

A exploração de dados científicos provenientes do satélite CoRoT do Centre National d’Études Spatiales (CNES) e da ESA, activo entre 2006 e 2014, e do satélite Kepler da NASA, activo de 2009 a 2018, veio demonstrar que as estrelas gigantes vermelhas são excelentes relógios suíços. Com efeito, a elevada fiabilidade das suas idades sísmicas permitiu avanços consideráveis em vários domínios da astrofísica, onde se inclui a Arqueologia Galáctica.

Um exemplo do potencial desta inovadora abordagem baseada na asterossismologia para ajudar a estabelecer a cronologia da Galáxia foi a descoberta inesperada de uma população de estrelas jovens ricas em elementos α. Os elementos α, como o cálcio e o magnésio, são elementos químicos sintetizados através da captura de partículas α (que são nada mais do que núcleos de hélio) no interior de estrelas massivas. Estes elementos, entretanto libertados para o meio interestelar na explosão final da estrela em supernova, ajudaram a formar novas gerações de estrelas. Sendo típicos indicadores de uma população estelar envelhecida, a sua detecção em excesso nesta população de estrelas aparentemente jovens levou assim a repensar as teorias vigentes de formação e evolução da Galáxia.


A Galáxia como nunca a vimos
A revolução espacial promovida pelo satélite Gaia, inequivocamente o porta-estandarte da ESA, e pela fotometria de alta precisão dos telescópios CoRoT e Kepler, foi determinante para a afirmação da Arqueologia Galáctica como área na vanguarda da investigação em astronomia. No entanto, apesar do inegável impacto inicial produzido por estudos baseados nos dados do CoRoT e do Kepler, existem limitações relacionadas com a cobertura espacial destes satélites. Com efeito, as suas observações restringiram-se sobretudo ao plano da Galáxia, no sentido em que forneceram um número insuficiente de campos de visão para um mapeamento radial e vertical do disco da Via Láctea.

Um primeiro passo importante rumo a uma cobertura espacial mais abrangente foi tornado possível pela missão K2 (ou a segunda vida do telescópio espacial Kepler). Esta missão fez um rastreio do plano que contém a trajectória aparente do Sol observada a partir da Terra, designada eclíptica (por ser nela, ou perto dela, que ocorrem os eclipses). O plano da eclíptica corresponde ao plano da órbita da Terra e não coincide com o plano da Galáxia. Este facto possibilitou observações conduzidas pela missão K2 na direcção dos pólos Galácticos, que permitiram o primeiro exame detalhado da estrutura vertical do disco com recurso à asterossismologia.

O verdadeiro ponto de viragem chegaria com o satélite TESS da NASA, lançado em 2018, pois com este novo telescópio somos agora capazes de levar a cabo estudos sísmicos de estrelas por todo o céu. Espera-se que o TESS consiga observar até um milhão de estrelas gigantes vermelhas com sinais de ondas sísmicas, o que se traduz num aumento extraordinário quando comparado com o conjunto das missões anteriores, que nos forneceram apenas algumas dezenas de milhares.

Os primeiros resultados a emanarem do TESS são reveladores do seu potencial para a Arqueologia Galáctica, tendo permitido datar em 11,6 mil milhões de anos o importante evento de fusão da Via Láctea com a galáxia anã Gaia-Encélado, um autêntico vestígio arqueológico descoberto recentemente com recurso a dados do satélite Gaia. Com o TESS, estão assim reunidas as condições para uma real mudança de paradigma no modo como compreendemos a nossa galáxia.


O melhor ainda está por vir
O período de 2035 a 2050, contemplado no planeamento a longo prazo da ESA (ESA Voyage 2050), coincidirá com uma série de avanços previsíveis na caracterização do conteúdo estelar da Galáxia. O satélite Gaia, com o auxílio de levantamentos espectroscópicos de larga escala, está neste momento a efectuar um rastreio sem precedentes das propriedades cinemáticas, astrométricas e químicas das várias populações estelares da Via Láctea. Dentro de uma década, teremos medições altamente precisas destas propriedades para centenas de milhões de estrelas.

Entretanto, missões espaciais como o TESS e o PLATO, uma futura missão da ESA com a participação científica e tecnológica do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço e com lançamento agendado para 2026, assim como observatórios a operarem no solo, como o Observatório Rubin, terão elevado a asterossismologia ao mais elevado estado de maturidade.

Mas não queremos ficar por aqui. Em resposta ao planeamento ESA Voyage 2050, dois consórcios compostos maioritariamente por cientistas europeus propuseram recentemente os conceitos de missão espacial Chronos e HAYDN. Dedicadas exclusivamente à Arqueologia Galáctica, estas missões permitir-nos-ão, se seleccionadas, perscrutar a Galáxia com um nível de detalhe sem precedentes. Queremos com isto presentear as gerações vindouras com uma visão plena da Via Láctea, o nosso tão querido quintal cósmico.



Tiago Campante é Marie Curie Fellow no Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço e Professor Auxiliar Convidado na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. Tiago mantém o seu próprio blogue científico.

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