São Gonçalo é o santo português que, sobretudo no Norte de Portugal, goza da maior devoção, logo depois de Santo António de Lisboa. Na sua História Eclesiástica de Portugal, o Padre Miguel de Oliveira diz apenas o seguinte: «S. Gonçalo de Amarante que se supõe falecido a 10 de Janeiro de 1259; o seu culto foi permitido pelo Papa Júlio III (24 de Abril de 1551) e confirmado por Pio IV (1561); Clemente X estendeu o ofício e a Missa a toda a Ordem dominicana (1671)».
Terá sido São Gonçalo uma invenção posta ao serviço de uma qualquer ideia ou propósito, ou podemos perceber o percurso da sua devoção ou do seu culto? O mais antigo documento que se refere a São Gonçalo, é um testamento de 18 de Maio de 1279 em que uma tal Maria Johannis lega os seus bens à Igreja de São Gonçalo de Amarante. Quer dizer, uns 20 anos depois da morte de São Gonçalo existia uma igreja dita «de São Gonçalo de Amarante». E há outros documentos... e escritos sobre a figura de São Gonçalo e o seu culto.
Na biografia oficial de São Gonçalo, apresentada como tal a partir do Flos Sanctorum de 1513, não há dúvidas: Gonçalo, nasceu em Tagilde, estudou rudimentos com um devoto sacerdote e frequentou depois a escola arqui-episcopal de Braga. Ordenado sacerdote foi nomeado pároco de São Paio de Vizela. Depois foi a Roma e Jerusalém; no seu regresso vendo-se desapossado do seu benefício prosseguiu um caminho de busca interior já anteriormente encetado, depois foi a experiência da vida eremítica, a pregação popular..., e logo caiu na ambiência mendicante da época, após o que se faria dominicano... As coisas não são assim tão lineares. De qualquer modo, tenha sido padre diocesano, cónego de Santa Maria em Guimarães, beneditino ou dominicano, tenha - quase por certo - passado de uma a outra condição, nenhuma destas hipóteses esbate a riqueza e o vigor da sua figura.
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Esta foi a tese de doutoramento do Padre Arlindo de Magalhães (Voz Portucalense): "São Gonçalo de Amarante e o seu tempo"
Julio A. Ramos Guerreira, no prefácio desta obra de Arlindo de Magalhães, define o Autor como «un hombre con honda sensibilidad en todos los campos de la estética, preocupado y en el diálogo com amplias dimensiones de nuestra cultura, arriesgado en una creatividad pastoral que rompe modelos ya existentes o potencia en ellos nuevas vertientes, viajero infatigable y ávido concedor de otras tierras, otras gentes y otros horizontes humanos, reconstructor de tantas piedras perdidas en los caminos de Santiago.»
De há muito lhe conhecemos, de facto, a paixão pelos caminhos de Santiago, cuja investigação no terreno e nas fontes documentais o conduziu ao «vulto» e ao «culto» de São Gonçalo de Amarante.
O conhecimento do taumaturgo de Amarante transformou-se em paixão e esta redundou num trabalho de grande fôlego, apresentado em Junho de 1996 como «tese de doutoramento em Teologia à Universidade de Salamanca.»
É este excelente «trabalho de investigação iniciado em 1993» que hoje merece a nossa atenção. Atenção redobrada à medida em que vamos percorrendo as cerca de 400 páginas do livro.
O título diz da intenção do autor: embora não haja prova histórica, no sentido documental do termo, quanto à existência do dominicano Gonçalo de Amarante, a verdade é que o seu «vulto» e o seu «culto» marcam de forma indelével a Idade Média portuguesa.
O culto de São Gonçalo foi de tal modo forte e persistente que em muitos lugares suplantou o culto de Santiago, resultado deste facto «testemunhos gonçalinos em freguesias a ele dedicadas e outros topónimos, nas capelas, altares e imagens, em pontes, feiras e festas – sobretudo ao longo dos caminhos jacobeus em solo português ou, mais ainda, nas suas maiores encruzilhadas.»
Este facto, aliado à presença gonçalina nos caminhos de peregrinação jacobeus, fez com que Arlindo de Magalhães perseguisse o «desejo de ir o mais longe possível na configuração histórica do vulto e na caracterização das etapas do culto a São Gonçalo, alimentado particularmente pela ordem dominicana.»
Deste trabalho exaustivo resultou um painel histórico da presença da Igreja em Portugal, e nomeadamente em terras de Entre-Douro-e-Minho, na Idade Média, que, não temos dúvida, virá a constituir referência obrigatória sempre que alguém se pretenda situar naquela época.
De facto, viajando esta obra, como escreve no prefácio Julio A. Ramos Guerreira (Professor da Universidade de Salamanca) entre a dúvida e a realidade, vemo-nos, na sua leitura, (citando de novo Ramos Guerreira) envolvidos «numa comédia de enredo em que se entrelaçam distintos argumentos» nos quais São Gonçalo é o traço de união.
Na verdade, a figura do eremita de Amarante permite a Arlindo de Magalhães confrontar-nos com a história de Igreja em Portugal, com a história de ordem dominicana, com a figura de vários agentes da pastoral no Portugal daquele tempo, com a relação cultural (em sentido amplo) de Portugal com outros espaços geográficos, com as diferentes atitudes e virtudes cristãs, com um estudo precioso sobre a santidade, a sua compreensão histórica e o seu tratamento hagiográfico, e, finalmente, com boa teologia, especialmente no que concerne às suas preocupações eclesiológicas e pastorais, afinal o fio que permite a construção da teia em que repousam os temas tratados por Arlindo de Magalhães e que faz com que este «trabalho poliédrico ganhe unidade nesse campo».
Neste quadro, Arlindo de Magalhães perseguiu e fixou, quase em jeito de cineasta (cujos métodos bem conhece - veja-se a qualidade da sua colaboração sobre cinema na «VP»), a personagem que dá pela designação de São Gonçalo de Amarante. E, para que bem a entendamos, Arlindo de Magalhães teve de erguer por detrás da personagem o cenário em que viveu e, mais ainda, o cenário em que se desenvolveu o seu culto. O primeiro, «um século de crise, uma crise criadora», a centúria de Duzentos; o outro, «nomeadamente a partir dos fins do século XV e depois no século XVI, outro tempo de crise a anunciar a síntese tridentina».
Tomando as palavras do Autor, podemos, neste livro, compreender como a figura de São Gonçalo «serviu de inspiração e bandeira, primeiro, a uma verdadeira tarefa pastoral de evangelização do Norte de Portugal, e, depois de "nacionalizada", à luta pela independência contra as pretensões de Castela, para finalmente entrar no imaginário do Povo português.»
Importante é referir o cuidado e vasto capítulo dedicado às «fontes e bibliografia», bem como os preciosos índices onomástico e toponímico, sem esquecer a elaborada transcrição de diversos manuscritos oriundos da Colegiada de Guimarães, da «Apologia parenética», de Frei Inácio da Graça, bem como dos «Discursos compendiosos», de Simão Vaz Barbosa, além de outros interessantes documentos, em que inclui a selecção de «Impressos», desde o «Officivm Divi Gvndisalvi» ao «Chronicon Fratrum», ao «Martyrologio dos Santos de Portugal, e festas geraes do Reyno», as «Anachephalaeoses», concluindo com o «Breve ristreto», um conjunto documental indispensável para acompanhar a dissertação de Arlindo de Magalhães.
Temos, assim, entre mãos uma obra de dimensão notável, que se revelará um instrumento de trabalho indispensável para quem quiser entender o tempo em que Portugal, primeiro, se formou como nação e, depois, se afirmou como estado independente. Ou seja, este «São Gonçalo de Amarante, um vulto e um culto» passa à categoria de obra indispensável para a compreensão da história do Povo português.
(Arlindo de Magalhães Ribeiro da Cunha, São Gonçalo de Amarante, um vulto e um culto. Ed. Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, 1997)
Bernardino Chamusca